Estavam todos ali, na varanda. Era apenas um passo que os distanciavam da grama. Mas ninguém ousava dar um passo a frente. A visão era belíssima. Mesmo que a noite e seu breu não permitissem que o verde da grama esbanjasse toda sua beleza em potencial. Mas o clima era perfeito, e a noite convidativa. Mas se tudo era tão propício, porque ninguém ousava por um pé a frente do outro para sentir verdadeiramente, com todos os sentidos, aquilo que até então somente viam? Qual será o medo que persegue os seres humanos, que os fazem contentar-se apenas com a visão das coisas? Eu sempre, por um impulso naturalmente contido em mim, quis saborear as coisas em minhas próprias mãos. Nunca me contentei com as histórias contadas, queria vivê-las. Nunca me conformei com conselhos, queria senti-los válidos. Em outras palavras, não importa o que me dissessem, eu tinha que por meus pés na grama mesmo que ninguém mais quisesse sentir sua umidade por entre os dedos da base... Eu quis, e quis mais; quis rolar pela grama, abraçando meus joelhos e me envolvendo ali com os dois cães que se dispunham da mesma sintonia que eu naquele gramado. Naquela noite quente, o clima perfeito de liberdade emotiva. Refugio único, ao qual sempre pude ser mais eu do ninguém. Lugar ao qual ninguém nunca pode entrar para me ver crua. Lugar ao qual só eu tenho acesso, só eu interpreto minhas ilusões sublimes e reais. Há um sonho dentro de mim muito grande, muito oculto, mas tão grande que não creio que possa ser compreendido. Reservo-me para algo maior, para um sentimento que o homem não enxerga, não exerce, mas todos o têm. Rolava na grama, até o ponto de perder a visão, e sentir a ausência dos dois cães que até então faziam companhia para mim em minha entrega ao solo. Uma entrega completa, como um cãozinho que oferece o ventre, de peito aberto e barriga voltada para cima, dispondo da sua maior fragilidade, sujeito a qualquer golpe.
Ele era belo, mas isso não era o dava-lhe sua verdadeira presença. Sua presença era real, era essencial - no sentido de que essa se constituía por sua essência própria e não de algo externo a si. Sentia sua presença. Pela brisa suave que acariciou minha face que pude perceber sua chegada. A primeira coisa que vi não foram suas bases firmes, ou o rosto severo, ou ainda, os pelos ruivos que lhe cobriam a frágil sensibilidade. A primeira coisa que vi, ou que tentei ver, foi sua alma. Ergui-me para alcançar seus olhos. E foi por eles que quis ver sua alma. Por seus olhos. Altos. Firmes. Positivos ou não, eram firmes. Talvez até um pouco duros. Mas eu senti a calma me abraçar e não me deixar pensar em nada que ativasse minhas armaduras. Pelos ruivos, de um ruivo queimado, vivido, experiente... de um ruivo que já apanhou, mas também já bateu. Também tinha branco, um branco de tranquilidade, de sutileza, mas também de sensibilidade emocional. Ele veio caminhando até mim, sem pressa, sem demonstrar suas certezas, mas eu as sentia mesmo assim. O caminhar do Lobo era manso, era delicado, mas eu não sei ao certo até que ponto era somente eu quem via isso. Ele vinha bem próximo, roçando-se todo em mim. Seu calor me envolvia, me tirando toda e qualquer resistência que ainda persistia. Fiquei ali então, a mercê. A mercê de sua vontade. A mercê de seus movimentos dóceis. Ele, como que numa dança amável, passava por de trás das minhas costas e terminava por abocanhar-me pela nuca. Assim como fazem as mães de matilhas para levar seus filhotes consigo. Os movimentos dele eram de uma calma surpreendente. Sua convicção era admirável. Mesmo quando escapei de sua boca, não se agitou em um momento sequer. Apenas com mais docilidade ainda fez sua dança em torno de mim novamente, fazendo questão de roçar-se mais enfaticamente dessa vez, me deixando mais atônita que antes, e me embatumando por completa daquela essência jogada ao ar livre. Era de um cheiro que me tomava como ser, e me fazia querer ser refém. Me deixei. Ele me pegou pela nuca com mais firmeza, mas sem demonstrar em nenhum mísero momento aflição. Firme, convicto. Me pegou, girou lentamente, até exibir suas costas ruivas a todos que se mantinham sentados a beira da varanda: boquiabertos, mudos, quase em choque. Imagino a visão que tiveram. A pena mesmo é que não sentiram. Só puderam ver, de costas. Aquela estrutura ruiva, inflamada de belos pelos longos, que se estendiam pela calda, mas que não chegavam a arrastar-se porque nela mantinha-se certa rigidez; suspensa no ar. E assim ele foi. E eu...me deixei levar.
"Qual será o medo que persegue os seres humanos, que os fazem contentar-se apenas com a visão das coisas? " encantador e pura verdade vi;
ResponderExcluirpois é... perguntas que me rodeiam a cabeça sempre antes de dormir.
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